quinta-feira, 12 de agosto de 2010

RELAÇÕES DE GÊNERO E CULTURA RELIGIOSA: UM ESTUDO COMPARADO SOBRE A ATUAÇÃO FEMININA NA IGREJA EVANGÉLICA LUTERANA DO BRASIL E ASSEMBLÉIA DE DEUS

André Dioney Fonseca
Mestrando em História (PPGH/UFGD).
Bolsista, CAPES.
Grupo de Pesquisa em História Religiosa e das Religiões (CNPq).
e-mail: andredioney@yahoo.com.br

Marcilene Nascimento de Farias
Mestranda em História (PPGH/UFGD).
Bolsista,CAPES.
Grupo de Estudos em Gênero, História e Interculturalidade (CNPq).
e-mail: marcilenefn@yahoo.com.br


Resumo: Nas últimas décadas, a sociedade passou por importantes mudanças sociais, econômicas e políticas, que levaram à contestação dos tradicionais papéis atribuídos aos homens e às mulheres. Nesse sentido, o campo religioso também sofreu o impacto dessas transformações, principalmente com a difusão das idéias feministas que incidiram diretamente sobre as relações de gênero. Com base nessas considerações, nesse estudo analisamos a atuação feminina em duas importantes instituições evangélicas: a Igreja Evangélica Luterana do Brasil e a Igreja Assembléia de Deus. A primeira ligada ao chamado protestantismo histórico e a segunda ao ramo pentecostal. Por meio de um estudo comparativo, objetiva-se demonstrar quais foram os desafios enfrentados pelas mulheres luteranas e assembleianas, congregadas em instituições que tinham em comum a tradição reformada, mas que eram imensamente distintas em suas práticas religiosas.

Palavras-Chave: Pentecostais, Protestante, Relações de Gênero

Abstract: In the last decades, society has gone trough important social, economical and political changes, that have led to the contestation of the traditional roles attributed to men and women. So, the religious field also has suffered the impact of those changes, mainly with the diffusion of feminist ideas that had happened directly on gender relations. Based on these considerations, in this research we analyze the female acting at two important evangelical institutions: Evangelical Lutheran Church of Brazil and Assembly of God Church. The first one is related to the called historic Protestantism and the second one to the Pentecostal sphere. By a comparative study, it is intended to demonstrate which were the challenges faced by lutheran and assembly women, congregated in institutions that had in common the reformed tradition, but that were immensely distinct in their religious practices.
Keywords: Pentecostal, Protestant, Gender Relations

Introdução

Nas últimas décadas, a sociedade passou por importantes mudanças sociais, econômicas e políticas, que levaram à contestação dos tradicionais papéis atribuídos aos homens e às mulheres e o campo religioso também sofreu o impacto dessas transformações, principalmente com a difusão das idéias feministas que incidiram diretamente sobre as relações de gênero (Rosado-Nunes, 2001). Conforme Lucila Scavone (2008) o contexto de desenvolvimento dos movimentos feministas abriu caminhos para que em todos os campos do social, as questões de gênero fossem difundidas e “o campo religioso, em seu aspecto institucional, tradicionalmente antifeminista, não ficou imune aos efeitos sociais e culturais das idéias feministas contemporâneas” (Scavone, 2008: 07).
Nessa conjuntura, o feminismo pós-60, buscou entender a ligação da mulher com os fenômenos religiosos, a fim de construir uma crítica às injunções da igreja à vida das mulheres. Todas as inquietações que permeavam essa relação, aparentemente paradoxal entre a mulher e a religião, levavam a um questionamento central: por que as mulheres buscavam a religião, se a religião ratificava-lhes um lugar de subalternidade na sociedade? (Scavone, 2008: 01). A resposta a uma questão de tamanha complexidade não poderia ser alcançada simplesmente no plano da especulação e por sua emergência o tema não demorou a alcançar o meio acadêmico. Dentre os estudiosos que buscaram contribuir com esse debate destaca-se Michelle Perrot para quem os vínculos entre mulheres e religião, são antigos, poderosos e ambivalentes, uma relação que mesclava sujeição e liberação, opressão e poder de maneira quase indissolúvel (Perrot, 2005: 270).
Conforme Perrot (2007), a relação das mulheres com a religião é paradoxal, ao passo que as religiões representam, ao mesmo tempo, poder sobre as mulheres e poder das mulheres. Exerce “poder sobre as mulheres”, por ter na diferença entre os sexos um de seus fundamentos, como é comum entre as grandes religiões monoteístas. No entanto, a religião torna-se “poder das mulheres”, quando estas conseguem transformar a posição de submissão que a religião lhes reserva, na base de um “contra-poder” e de uma “sociabilidade”. Dessa maneira, a religião ainda que reforce a submissão das mulheres apresenta-se como um abrigo às suas misérias (Perrot, 2007: 83).
Na perspectiva de Pierre Bourdieu (1999), o trabalho de “diferenciação” a que homens e mulheres estão submetidos foi até época recente, garantido por três instâncias principais: a Família, a Igreja e a Escola. A Igreja é marcada pelo antifeminismo profundo de um clero pronto a condenar todas as faltas femininas à decência, sobretudo em matéria de trajes, reproduzindo, assim, uma visão pessimista das mulheres e da feminilidade, através de uma moral familiarista, dominada por valores patriarcais e, principalmente, pelo dogma da inata inferioridade das mulheres (Bourdieu, 1999: 103).
Desse modo, a relação entre mulheres e religião se torna complexa, pois as práticas religiosas ao mesmo tempo em que oferecem às mulheres repostas imediatas aos seus problemas familiares e pessoais, também reafirmam o lugar tradicional das mulheres na sociedade, de acordo com sua doutrina patriarcal e androcêntrica (Scavone, 2008: 06).
Segundo Rosado-Nunes, historicamente, os homens dominam a produção do que é “sagrado” nas diversas sociedades e os discursos e práticas religiosas trazem a marca dessa dominação. Normas, regras, doutrinas são definidas por homens em praticamente todas as religiões conhecidas. Enquanto isso, as mulheres continuam ausentes dos espaços definidores das crenças e das políticas pastorais e organizacionais das instituições religiosas. Para a autora, o investimento da população feminina nas religiões dá-se no campo da prática religiosa, nos rituais, na transmissão, como guardiãs da memória do grupo religioso. Sendo assim, um dos principais objetivos dos estudos de gênero é desconstruir o preconceito de que a biologia determina o feminino, enquanto que, por outro lado, a cultura ou a dimensão humana seria uma criação masculina (Rosado-Nunes, 2005: 363).
Na perspectiva de Rosado Nunes, na tentativa de desconstruir o determinismo biológico, o pensamento feminista encontrou na religião um de seus principais adversários, uma vez que as religiões trazem de maneira explícita ou implícita em sua prática institucional e histórica, uma visão antropológica que estabelece e delimita os papéis masculinos e femininos. O fundamento dessa visão, segundo a autora, encontra-se em uma ordem não humana, não histórica, e, portanto, imutável e indiscutível, tomando a forma de dogmas. Reflexos das sociedades nas quais emergiram, as religiões espelham sua ordem de valores, que reproduzem em seu discurso, sob o manto da revelação divina. Por isso, o lugar reservado às mulheres, conforme essa autora, no discurso e na prática religiosa não foi, e freqüentemente ainda não é, dos mais felizes (Rosado-Nunes, 2005, p. 364).
Já Eliane Moura da Silva (2006) considera o poder das mulheres dentro das igrejas algo real e concreto. Para a autora, os ministérios femininos e as atividades congregacionais, ao mesmo tempo em que servem para segregar as mulheres, também desencadeiam formas alternativas de poder institucional, além de apoio emocional e material mútuo encontrados no espaço que a autora denomina de “comunidades de sexos”. Além disso, as mensagens religiosas desempenham uma função pragmática, por meio das conversões e da reforma dos papéis de gênero, melhoram o convívio dentro do núcleo familiar. Diante das constantes pressões sofridas em torno das diferentes funções e papéis sociais que devem desempenhar enquanto mães, esposas, trabalhadoras, donas de casa e cidadãs, muitas mulheres “optam” por envolver-se em comunidades religiosas tendo-as como fortes elementos de apoio (Silva, 2006: 22).
Ao estabelecer um diálogo entre gênero e religião Sandra Duarte de Souza (2006) observou que a ascensão pública das mulheres representa uma ameaça, principalmente, no caso das organizações religiosas, onde tem sido cada vez mais crescente a participação das mulheres nas esferas de poder institucional. Ao considerar o caso do “protestantismo histórico”, a autora verificou a presença feminina em lugares anteriormente ocupados somente por homens, como é o caso dos seminários e das faculdades de teologia, bem como a crescente participação feminina em postos antes exclusivamente masculinos, como a posição de bispas, pastoras, presbíteras e diaconisas. Para essa autora, tais mudanças, ainda que lentas, evidenciam um processo de ruptura com a concentração androcêntrica do poder na sociedade (Souza, 2006: 34).
Semelhante tendência foi observada por Maria das Dores Campos Machado (2005) para o caso dos pentecostais. Em análise das principais transformações ocorridas nos últimos 15 anos no sistema de gênero hegemônico no pentecostalismo, a autora demonstra que ocorreram inúmeras transformações nas representações e relações de gênero nesse grupo religioso, com avanços, principalmente, na esfera social, pois a mulher pentecostal ampliou sua participação tanto na igreja como nas atividades políticas por incentivo de suas instituições – ainda que tais atividades fossem, em parte, controladas pelos homens.
Conforme aponta Perrot (2005), o silêncio é o comum das mulheres, sendo conveniente à sua posição secundária e subordinada, um mandamento reiterado através dos séculos pelas religiões, pelos sistemas políticos e pelos manuais de comportamento. Exigi-se silêncio das mulheres na igreja ou no templo, maior ainda na sinagoga. Todavia, Perrot observa que as mulheres não respeitaram estas injunções, seus sussurros e seus murmúrios correm na casa, nos vilarejos, nas cidades, inflados por suspeitos e insidiosos rumores que flutuam nas margens da opinião. Para a autora, “os dominados podem sempre esquivar-se, desviar as proibições, preencher os vazios do poder, as lacunas da História. Imagina-se, sabe-se que as mulheres não deixaram de fazê-lo” (Perrot, 2005: 10).
Desse modo, metodologicamente esta pesquisa segue os estudos de gênero, mormente os trabalhos que nas últimas décadas buscaram entender a relação entre gênero e religião. Sandra Duarte de Souza considera que as questões envolvendo gênero e religião são ainda pouco discutidas e pouco admitidas, abordadas de forma muito acanhada. A autora assinala que a religião é uma construção sócio-cultural e que sua discussão envolve as transformações sociais, as relações de poder, de classe, de gênero, de raça/etnia. Estudá-la requer a inserção “num complexo sistema de trocas simbólicas, de jogos de interesses, na dinâmica da oferta e da procura; é deparar-se com um sistema sócio-cultural permanentemente redesenhado que permanentemente redesenha as sociedades”. (Souza, 2006: 8). Deste modo, para Souza pensar as representações de gênero demanda pensar o papel da religião na construção social dos sexos (Souza, 2006: 9).
A definição de gênero utilizada neste estudo baseia-se na definição de Joan Scott, para quem o gênero “é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder” (Scott, 1996: 14). Para Scott, utilizar a categoria gênero em análises sociais significa rejeitar explicitamente as justificativas biológicas para as desigualdades nas relações sociais entre os sexos. A autora acredita ainda que através das relações de gênero as relações de poder, de dominação e de subordinação são construídas.
A partir dessas considerações, nesse estudo analisaremos a atuação feminina em duas importantes instituições evangélicas: a Igreja Evangélica Luterana do Brasil e a Igreja Assembléia de Deus. A primeira ligada ao chamado protestantismo histórico e a segunda ao ramo pentecostal . Por meio de um estudo comparativo, objetiva-se demonstrar quais foram os desafios enfrentados pelas mulheres luteranas e assembleianas, congregadas em instituições que tinham em comum a tradição reformada, mas que eram imensamente distintas em suas práticas religiosas.





Liga das Senhoras Luteranas do Brasil (LSLB): a atuação feminina na Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB)

As observações em torno da atuação feminina na Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB), por meio da Liga de Senhoras Luteranas (LSLB), são de extrema importância para entendermos como se desenvolveu o trabalho feminino e as lutas das mulheres nessa instituição religiosa.
A primeira Liga de Mulheres da Igreja Luterana foi organizada na Igreja Luterana Sínodo de Missouri (LCMS) nos Estados Unidos, a Lutheran Women’s Missionary Leage (LWML), ao que se tem nota, esta foi de grande importância tanto para as obras de missão como para o serviço social da comunidade. Na Igreja Luterana do Brasil, também aos poucos foram sendo fundadas sociedades de senhoras e foi a partir da formação dessas sociedades que as mulheres luteranas decidiram verificar a possibilidade de formar uma Liga Nacional, o que veio a se concretizar alguns anos mais tarde (Warth, 1979: 208).
Foi a partir da formação dessas sociedades que as mulheres luteranas passaram a buscar a formação de uma Liga Nacional que congregassem estas sociedades já existentes em torno de um objetivo comum: auxiliar financeiramente a IELB e ao mesmo tempo promover a união das mulheres luteranas. Ottilie Mueller, a principal idealizadora da LSLB, em entrevista ao então Boletim Informativo da Liga de Senhoras Luteranas do Brasil em 1966, relatou que eram bem numerosas as sociedades de senhoras existentes na IELB antes da criação da LSLB, estas sociedades, segundo a entrevistada, eram muito ativas, porém trabalhavam no interesse de suas próprias comunidades. Para Ottilie Mueller, essas comunidades, caso se unissem e formassem uma Liga Nacional, poderiam colaborar de forma mais direta no trabalho da Igreja:

pensava eu que as senhoras do Brasil poderiam estender a esfera de suas atividades além dos limites de suas respectivas congregações; lembrada do trabalho da Liga Missionária de Senhoras da igreja-mãe, julgava eu que o Senhor também teria prazer num desenvolvimento maior do trabalho executado pelas irmãs no Brasil”.

Ottilie Mueller conhecia bem o que se passava na Igreja Luterana dos Estados Unidos. Norte-americana que era, veio para o Brasil, acompanhando seu esposo o pastor George Jhon Mueller, em 1936. O início das atividades do pastor Mueller no Brasil foi como professor no Seminário Concórdia, em Porto Alegre, ministrando aulas apenas em alemão, pois não sabia falar português. Após onze anos de atividades missionárias no Brasil, George e Ottilie Mueller, voltaram aos Estados Unidos para um período de férias. Enquanto esteve nos Estados Unidos Ottilie conheceu pessoalmente o importante trabalho desenvolvido pela Liga Missionária de Senhoras Luteranas (LWML), fato que aguçou mais ainda seu interesse em organizar uma Liga Nacional de Senhoras Luteranas no Brasil.
De volta a Porto Alegre em 1949, Ottilie Mueller resolveu seguir o exemplo das senhoras luteranas norte-americanas, mobilizando as mulheres luteranas brasileiras em torno da formação de uma Liga Nacional. Ottilie Mueller aproveitando a realização, em Porto Alegre, de uma Convenção Pastoral, em julho de 1956, convidou as esposas de pastores e professores que estariam presentes, além de outras lideranças femininas de Porto Alegre, para uma reunião, ocasião em que apresentaria a idéia de formar uma Liga Nacional. Assim, atendendo prontamente ao convite da senhora Mueller, 93 mulheres pertencentes a várias sociedades de Porto Alegre e uma representante do Estado de Santa Catarina, reuniram-se às 15 horas do dia 4 de julho de 1956, com o intuito de fundar uma liga feminina na IELB.
Como a participação na reunião foi majoritariamente de senhoras de Porto Alegre, a Liga fundada nesta ocasião fora considerada provisória, o que levou à convocação oficial de todas as sociedades de senhoras do Brasil para o 1º Congresso Nacional da LSLB, em Porto Alegre, no dia 16 de janeiro de 1957, quando de fato seria oficialmente criada a liga de senhoras luteranas do Brasil. Muitos detalhes sobre esse encontro estão descritos num documento que podemos considerar como a certidão de nascimento da Liga: a Ata do 1° Congresso Nacional de 1957, que se encontra salvaguardada no arquivo histórico da LSLB. Pelo que lemos nesse documento, o conclave realizou-se no Salão da Juventude do Seminário Concórdia de Porto Alegre, com a participação de 23 sociedades de senhoras, com uma presença total de 103 senhoras, vindas principalmente do Rio Grande do sul, mas também de Santa Catarina, São Paulo e Paraná.
Durante o Congresso discutiu-se e aprovou-se o projeto dos estatutos que deveriam reger a Liga e também foi feita uma eleição para definir a primeira diretoria geral da LSLB . Em contrapartida, foram eleitos três pastores que desempenhariam a função de conselheiros da Liga, demonstrando, assim, a vigilância masculina da IELB, nas atividades da LSLB.
Alguns dias após a realização do 1° Congresso Nacional da LSLB, teve início a 34ª Convenção Nacional da IELB. Aproveitando a oportunidade a LSLB, encaminhou à 34ª Convenção uma moção propondo o reconhecimento oficial da LSLB como uma organização auxiliar da IELB:


Moção n° 1 Liga Missionária de Senhoras Luteranas do Brasil: prezados irmãos na fé, para aproveitar o grande potencial que representam seus membros femininos adultos, a Igreja-mãe permitiu faz anos, a organização duma Liga Missionária de Senhoras Luteranas. Esta Liga tem proporcionado valiosa educação missionária a seus membros e ajuntando vultuosas somas em dinheiro para a construção de capelas, casas de descanso, hospitais e para outros objetivos úteis à Igreja. Sugerimos à DD. Convenção permita que também no seio de nossa querida Igreja Luterana do Brasil seja concedida a função duma “Liga de Senhoras Luteranas” cujo potencial poderá ser aproveitado para o bem da causa de Cristo. Para a orientação da Comissão que examinará esta sugestão, juntamos uma cópia dos estatutos que poderão reger a projetada entidade. Deverá funcionar segundo os moldes da juventude Luterana. Queira o chefe da Igreja guiar as deliberações da Convenção de tal maneira que redundem em sua glorificação.

Conforme consta na Ata da 34ª Convenção Nacional, o parecer da IELB foi favorável à fundação da LSLB:

o reverendo E. Hoerlle apresentou o parecer da comissão encarregada com o estudo da moção n° 1, referente à fundação de uma Liga de Senhoras Luteranas do Brasil. De acôrdo com o parecer favorável a Convenção aprovou a organização desta entidade e bem assim a escôlha dos três conselheiros pastorais: rev. Ernesto Heine, rev Elberto Schelp e rev George J. Müller.

Muito mais do que um parecer favorável, a permissão dada pela liderança masculina da IELB à criação de uma liga de mulheres, significava o reconhecimento da importância dos serviços prestados por estas à Igreja. Um argumento, aliás, muito bem explorado pela LSLB que em seu estatuto de 1960 afirmava:

1) Nome: o nome da entidade será “Liga das Senhoras Luteranas do Brasil” ; 2) Fins da entidade: a) Despertar e conservar maior espírito missionário entre as senhoras de nossa Igreja (Educação Missionária, inspiração missionária e serviço missionário); b) o de ajuntar fundos para determinados projetos missionários, especialmente para aqueles que não foram contemplados adequadamente no orçamento da Igreja; c) o de ajuntar fundos para fins beneficentes.

Munidas desses objetivos, as mulheres luteranas não pouparam esforços para cumpri-los integralmente, exercendo a função de verdadeiras ajudadoras, sem qualquer pretensão de destoar dos cânones que as impediam de ocupar certos espaços na hierarquia da Igreja. A LSLB era uma organização de mulheres, mas sendo parte da Igreja, deveria manter-se intimamente relacionada com ela e seus programas dependeriam de seu apoio e aprovação.
Apesar dessa dependência a Liga passou a gozar de grande prestígio no corpo da Igreja, mormente por seu importante apoio financeiro, fruto do plano nacional das “sacolinhas”. A escolha do nome para essa campanha de arrecadação foi motivada pelo fato de ser a sacola um acessório presente na vida doméstica da mulher, por isso instruía-se que todas as mulheres luteranas mantivessem na cozinha de suas casas uma “sacolinha” onde seria depositado parte do dinheiro resultante de pequenas compras diárias. As ofertas arrecadadas pelas “sacolinhas” eram destinadas à LSLB, para a manutenção de trabalhos missionários da IELB em todo território nacional e em alguns casos também em missões no exterior.
O sistema de arrecadação era um sucesso uma vez que as ofertas das sacolinhas permitiam à LSLB a realização de importantes serviços missionários como a formação de novos pastores, auxílio para a construção de capelas nos campos de missão, compra de automóveis, material missionário, material para a escola dominical, bolsas de estudo, assistência às missões, assistência a entidades sociais, à família e à mulher, principalmente por meio da literatura.
Na década de 60, a IELB mantinha uma missão em Portugal, no entanto sérios problemas financeiros abalavam esse projeto missionário. Nesse sentido, a LSLB decidiu em 1963, enviar 50 hinários para a missão lusa e em 1968, estabeleceu como meta arrecadar dez mil cruzeiros para que pudesse ser comprado um carro para o missionário daquele país. No Brasil as senhoras decidiram ajudar financeiramente a Igreja Luterana em Mato Grosso e decorar o interior da capela de Brasília.
Nos anos 70 a LSLB continuou desenvolvendo projetos e alcançando grande prestígio no corpo da Igreja, em virtude de seu apoio financeiro, fruto do plano nacional das “sacolinhas”. No início dessa década a LSLB conseguiu cumprir com a meta estabelecida no Congresso Nacional de 1968, de arrecadar dez mil cruzeiros para a compra de um carro que seria doado ao pastor da Igreja Luterana de Portugal. Conforme consta na Ata do Congresso Nacional da LSLB de 1971, “os dez mil cruzeiros destinados à Portugal foi utilizado para comprar um carro, sendo o restante do dinheiro destinado à manutenção do mesmo”.
O envolvimento da IELB, na década de 70, com a ação social também se fez sentir, nesse período o trabalho da Igreja com deficientes auditivos recebeu grande impulso com a fundação oficial, pela IELB, no dia 15 de outubro de 1970, de um Centro Educacional para Deficientes Auditivos (CEDA) (Buss, 2006: 178). Deste modo, de 1971 a 1973 a LSLB adotou como um de seus projetos principais auxiliar financeiramente esse Centro Educacional para Deficientes Auditivos (CEDA), a fim de que a escola pudesse adquirir material escolar que tanto necessitava. Em reconhecimento pelo auxilio financeiro recebido, a escola enviou nota de agradecimento à revista Servas do Senhor: “A nossa escola agradece muito às Senhoras Luteranas pela doação de Cr$ 2.000,00 a nós enviada. Com este dinheiro nós conseguimos comprar mesas para o jardim de infância, quadros-negros e também dividir as salas de aulas com paredes de madeira, que se fazia tão necessário para nosso trabalho”.
Outro projeto adotado pela LSLB nesse período foi auxiliar a expansão missionária da IELB para a região Norte do país. Para tanto, em 1971 a Liga destinou 1200 dólares para a compra de um trailer para o pastor responsável pelos trabalhos de missão na rodovia Belém-Brasília.
Na década de 80, o grande objetivo da LSLB continuava sendo o de auxiliar a IELB. Entre os projetos desenvolvidos pela Liga nesse período destacavam-se: auxílio para a construção de locais de culto, doação de material missionário e auxílio a entidades assistenciais. Em 1982, quando a LSLB comemorou 25 anos de fundação, estabeleceu que as ofertas arrecadadas através das sacolinhas, seriam aplicadas na construção de 25 Centros Integrados de Missão da IELB, ou seja, locais em que seriam realizados cultos, reuniões, funcionariam escolas dominicais e atividades de atendimento social. Em 1983, a LSLB decidiu que o dinheiro arrecadado com a oferta das sacolinhas, também seria destinado para o pagamento de bolsas de estudo aos estudantes carentes matriculados nas instituições de ensino da Igreja.
Nos anos 90, a IELB passava por sérias dificuldades financeiras e diante dessa situação decidiu lançar, em 1993, um “Manifesto à Igreja”, a fim de mostrar a todos “uma radiografia da sua situação, aguardando dela uma reação imediata e concreta” (Buss, 2006: 294). O manifesto provocou resultados positivos, pois em 1994, 60% das congregações haviam declarado sua intenção de maior participação no desenvolvimento da Igreja. E diante desse quadro a LSLB não ficou indiferente, e continuou a aplicar os recursos provenientes das “sacolinhas” em projetos da Igreja, como bolsas de estudo para estudantes de teologia dos seminários da IELB, doação de material de escola dominical para os campos missionários da Igreja e auxílio para a construção de capelas nos campos de missão.
Como podemos perceber, não foram poucas as atividades da LSLB em prol da Igreja. Mas o benefício não era somente para IELB, nesse conjunto de ações as próprias mulheres envolvidas em sua consecução também eram beneficiadas, pois que logravam cada vez mais prestígio junto àqueles que enxergavam com muitas reticências a ascensão das mulheres na Igreja. E esse foi o fiel da balança na luta por um maior equilíbrio nas relações de gênero na IELB.
Além da ajuda financeira à Igreja a LSLB ainda mantinha uma revista trimestral tida como o mais importante elo de ligação entre a Diretoria Nacional da LSLB e as mulheres luteranas de todo o Brasil. A revista iniciou com o nome de Boletim Informativo da Liga das Senhoras Luteranas do Brasil (LSLB), em março de 1960. Com um número de oito páginas, o principal objetivo do Boletim era informar as senhoras luteranas sobre os propósitos da LSLB, divulgar congressos, pequenas notícias e mensagem bíblica.
Todavia, a contínua organização da LSLB aliada ao sucesso de arrecadação das “sacolinhas”, permitiram que no ano de 1967, o visual do Boletim mudasse definitivamente, passando a se chamar revista Servas do Senhor. Com esse feito as mulheres luteranas assumiam todas as dificuldades inerentes às publicações periódicas, principalmente os altos custos que envolviam a produção de um impresso dessa natureza (De Luca, 2005).
Porém, uma vez mais as luteranas mostraram grande capacidade de organização e conseguiram, através de inúmeras campanhas, manter por mais de trinta anos a circulação da revista Servas do Senhor, com a periodicidade respeitada até mesmo em momentos de graves instabilidades econômicas do país. A luta pela manutenção da revista explica-se pelo fato da Servas do Senhor representar um espaço privilegiado para as mulheres luteranas divulgarem seus trabalhos além de ser um canal onde seus descontentamentos poderiam ser debatidos.
Todavia, nem sempre a atuação das mulheres luteranas na Igreja foi tão ativa conforme apontamos acima. Ressalte-se que a fim de terem uma participação atuante e um trabalho reconhecido as luteranas trilharam um longo caminho. Inicialmente, sua participação se restringia unicamente aos cultos, nesse momento as mulheres ainda não contavam com um espaço próprio na Igreja e, tampouco, podiam ocupar cargos na administração.
Exemplo da tentativa de limitação da ação das mulheres na IELB foi o texto do pastor Donaldo Schüler. Trata-se do estudo realizado pelo professor da Faculdade de Teologia do Seminário Concórdia de Porto Alegre, Donaldo Schüler em 1971, a partir de pesquisa na área de hermenêutica e exegese bíblica. O título do estudo punha às claras a intenção central do profundo exame bíblico realizado pelo professor: a função da mulher na Igreja.
O texto de Donaldo Schüler, foi norteador das ações da Igreja nos temas que envolviam questões femininas (principalmente em tempos de exacerbada atividade dos movimentos feministas). O estudo de Schüler trazia respostas, ou pelo menos as respostas que a liderança da IELB queria ouvir, sobre indagações que cada vez mais tomavam corpo no seio da Igreja: qual é a contribuição da mulher na Igreja e até onde pode ir essa contribuição? O momento requeria respostas rápidas e pontuais, pois não eram poucos os movimentos que contestavam o lugar destinado às mulheres nas mais diferentes esferas da sociedade, inclusive na religião.
Além disso trazia também duas preocupações principais: em primeiro lugar mostrar que a IELB não era um “organismo masculino”, onde às mulheres eram dadas apenas as funções subalternas. E em segundo lugar, demonstrar que os homens não estavam perdendo espaço para as mulheres, mesmo num momento em que elas conquistavam muitos direitos: “não deve parecer, na época em que a mulher desperta para uma área maior de suas competências, que o homem receie perder algumas de suas prerrogativas que o passado lhe concedeu” . Percebemos a partir dessa afirmação uma clara tentativa do autor em mostrar o quanto a ordem divina era imutável e que o movimento feminista não iria conseguir atingi-la, pois os papéis desempenhados por homens e mulheres encontravam-se definidos desde o momento da Criação.
Desse modo, segundo o autor, a Igreja estava diante de um problema novo e em tal situação corria-se um duplo perigo. Por um lado, corria o risco de ceder à pressão das circunstâncias, que em certos momentos “falavam mais alto que a palavra de Deus”. E por outro lado, havia o perigo de sacramentar o passado, pois segundo o autor “sucumbe-se a ele, quando se declara intocável a tradição (...) a vontade de Deus não se manifesta inequivocamente na história da igreja. O homem tem a desastrosa liberdade de obstruir a manifestação de Deus”.
Schüler se dizia consciente dos riscos a que se expunha a Igreja, por estar inserida em um período onde se buscava uma sociedade menos desigual, com maior equidade de gênero, por isso, acreditava ser de suma importância examinar a função da mulher na igreja, numa época, que segundo ele, “a ajudadora do homem passava a substituí-lo em muitas funções que no passado estavam reservadas a ele exclusivamente” .
Schüler acreditava que na Igreja a mulher poderia ensinar crianças, moços e adultos, desde que não fosse no momento do culto, porque conforme sua interpretação bíblica, a mulher deveria ter uma participação ativa, mas discreta na igreja. E caso fosse permitido à mulher liderar os serviços religiosos contínua e sistematicamente, o princípio da participação discreta estaria prejudicado. No entanto, esta, segundo o autor, seria uma razão implícita, porém havia também uma razão explícita utilizada para limitar a participação da mulher na igreja, a culpa de Eva no pecado original, estendida agora a todas as outras mulheres: “por que primeiro foi formado Adão, depois Eva. E Adão não foi iludido, mas a mulher sendo enganada caiu em transgressão. (...) A transgressão de Eva sugere que a mulher, como líder está mais exposta ao engano” .
Desta maneira, por meio do texto de Schüler percebemos que a Igreja utilizava-se da Ordem da criação a fim de manter as mulheres afastadas das mais importantes esferas de poder dentro da Igreja, pois estando mais propensas ao pecado, as mulheres deveriam ser protegidas. No entanto, sabemos que tais atitudes serviram para dar às religiões um caráter misógino, androcêntrico e patriarcal, responsável por reforçar as desigualdades de gênero, apontando a submissão feminina ao homem como ordem natural e imutável. Assim, vemos o importante papel desempenhado pela religião no que tange a uma inferiorização do feminino, definindo o lugar que se acredita reservado à mulher na sociedade e na igreja.
As próprias mulheres da LSLB reconheciam que embora participassem ativamente das atividades da Igreja, em alguns momentos ainda existiam barreiras ao trabalho feminino. Às vezes discursos inflamados escancaravam o descontentamento que as luteranas geralmente demonstravam de forma sub-reptícia. É o caso do artigo publicado no Mensageiro Luterano de 1989, de Beatriz Carmem Warth Rayman, onde ela manifestou sua opinião sobre a participação da mulher na Igreja. Beatriz iniciava seu artigo com a seguinte indagação: Qual é o papel da mulher dentro da IELB? Na sua concepção, apesar das mulheres serem maioria dentro da IELB, e uma maioria ativa, elas sentiam falta de espaço para crescer. “Às vezes esta falta de espaço é por falta de diálogo, por regulamentações das congregações, às vezes é por preconceito que podem até ser impostos por nós mesmas, mulheres cristãs”. Beatriz Rayman, não queria que sua atitude fosse entendida como um “discurso enfadonho e chato de feminismo”, mas como uma sugestão para que a questão da mulher fosse discutida mais amplamente dentro da Igreja.
O artigo de Beatriz Rayman ainda ressaltava que verdades bíblicas não podiam ser discutidas, mas tradição sim, pois algumas vezes por tradição e costume as mulheres eram impedidas de participar efetivamente na igreja. Portanto, alguns costumes podiam facilmente ser abolidos sem prejuízo para a doutrina. Beatriz pretendia através de seu artigo mostrar que os tempos eram outros, que a Igreja estava inserida em uma sociedade em mudança, onde as mulheres se desvinculavam do ambiente doméstico e passavam a assumir novas responsabilidades, “ela é chefe de empresa, mãe, esposa, companheira, presidente de nações, mecânica, trabalha em casa, fora de casa, na lavoura, na oficina, no escritório, na escola, na fábrica, equilibrando orçamento, tomando decisões”.
Esse descontentamento também fica evidente na fala da ex-presidente da LSLB, senhora Irena Widmann, que ao ser questionada sobre a abertura da mulher na Igreja respondeu: “Sinto que no trabalho da igreja em si, na diretoria de uma comunidade, ainda não foi dada a abertura para a mulher poder trabalhar” .
Nesse caso, também merece destaque o artigo publicado na revista Servas do Senhor em 1971, de autoria de Ivone Schüler, que tinha por objetivo analisar a posição da mulher na Igreja. O artigo de Ivone Schüler iniciava com a seguinte indagação: não deveria a mulher procurar os mesmo direitos que os homens dentro da igreja? O direito de falar, votar, presidir? A fim de encontrar a resposta para essa questão Ivone dizia que em seu artigo pretendia tratar da mulher dentro de sua principal função social e biológica, ou seja, da mulher enquanto esposa e mãe. Com isso Ivone, pretendia mostrar que as restrições que a Bíblia apresentava às mulheres geralmente estavam vinculadas ás mulheres enquanto esposa e mãe.
Segundo Ivone, lia-se em Tm 2.10-12 que a “mulher aprenda em silêncio, com toda submissão, que não ensine e nem exerça autoridade sobre o marido” e no versículo 15 do mesmo capítulo constava que a mulher “será preservada através de sua missão de mãe”. Sendo assim, indagava Ivone: quem foi realmente alvo de todas essas restrições? Não a mulher como tal, mas a esposa e mãe. Não se trata da submissão da mulher ao homem, mas da esposa ao marido, isso porque o marido é o cabeça da mulher. “Isto significa que a rainha da Inglaterra pode governar, como mulher, todo o império Britânico, mas como esposa estará submissa a seu marido no seio do lar”, concluía Ivone.
Nesse sentido Ivone observava que a Bíblia estabelecia apenas uma posição fundamental: a posição da mulher casada, da esposa. E ela não pretendia romper com essa posição da mulher no lar, pretendia apenas mostrar que a IELB deveria promover mudanças no seu modo de pensar a mulher na Igreja, pois mesmo as mulheres dando provas de suas capacidades a Igreja ainda tinha resistência em reconhecê-las.
Diante dessa breve análise percebemos que embora as relações entre mulheres e religião tenham se transformado significativamente na últimas décadas, fruto de importantes mudanças sociais, ainda persistia por parte da hierarquia masculina da IELB a tentativa em limitar e demarcar os espaços de atuação de seu público feminino. Vimos, por outro lado, que as luteranas se organizaram e se destacaram, ampliando seu campo de participação nas atividades da Igreja. A LSLB foi um importante espaço onde as mulheres luteranas lutavam sem promover um conflito aberto com a liderança masculina. Às vezes recuando em seus posicionamentos, ora afinando-se aos discursos dos homens, as luteranas se utilizavam dos exitosos resultados de seus trabalhos para romper com a tradicional hierarquia protestante e permitir o acesso das mulheres aos cargos considerados exclusivamente masculinos.

A questão do ministério feminino: os debates em torno da atuação feminina na Igreja Assembléia de Deus

Não há como dissociar a participação das mulheres da história da Igreja Assembléia de Deus e esse reconhecimento não está circunscrito apenas aos estudos acadêmicos, pois nenhum dos principais livros de cunho histórico produzidos pelos memorialistas da Igreja, deixou de dedicar espaço à atuação das mulheres assembleianas nas mais variadas frentes de trabalho (Oliveira, 1997; Conde, 2005; Almeida, 1982).
A presença feminina na Assembléia de Deus remonta à sua fundação já que quando os dois missionários suecos Daniel Gustav Högberg – ou Daniel Berg como ficaria conhecido no Brasil – e Adolfph Gunnar Vingren foram expulsos da Igreja Batista de Belém do Pará no ano de 1910, por motivo de rixas doutrinárias, foram acompanhados por um grupo de vinte batistas em que mais da metade eram mulheres e elas, conforme indicam os registros deixados por Daniel Berg (1997) e Gunnar Vingren (2000), trabalharam ativamente nas atividades de ensino nas escolas dominicais e no serviço de evangelização. Outro aspecto importante a se destacar é que o primeiro membro da Assembléia de Deus a receber o chamado “Batismo com o Espírito Santo” foi Celina Martins de Abulquerque que por sua pioneira experiência espiritual, notabilizou-se na história assembleiana, sendo citada em inúmeros livros históricos da Igreja e, até mesmo, no diário do fundador Gunnar Vingren (2000).
Enquanto as mulheres estavam cooperando com os trabalhos da Igreja sem a pretensão de ocupar cargos e espaços que eram exclusivos aos homens não houve por parte da liderança qualquer restrição aos afazeres femininos. Todavia, a primeira movimentação de uma mulher no sentido de transpor os limites que demarcavam a atuação feminina na Igreja gerou grande polêmica entre pastores e missionários.
A mulher em questão não era um simples membro, seu nome, Frida Strandberg Vingren, recomendava respeito e cautela o que, no entanto, não a livrou de inúmeras críticas que apontavam a exagerada liberdade de atuação a que dispunha. Sueca como seu esposo Gunnar Vingren, Frida teve sua formação marcada pela tradição luterana, por isso, além de possuir formação superior em enfermagem, tinha grande experiência na condução de trabalhos comuns às igrejas. Atuava na área musical, de ensino e demonstrava grande inclinação à produção de textos e poesias .
A atuação de Frida Vingren saltava aos olhos da liderança assembleiana, pois era do conhecimento de todos que ela dirigia cultos quando seu marido não estava presente, realizava pregações em praças públicas e havia influenciado a separação de Emília da Costa para o diaconato – a única mulher que alcançou esse posto na história da Assembléia de Deus.
Ademais, o Jornal Boa Semente, primeiro periódico da Igreja, apesar de estar aos cuidados de Gunnar Vingren era na verdade gerenciado por sua esposa, situação que não se alterou com a criação do jornal Mensageiro da Paz, pois em sua primeira edição Frida Vingren se fez presente analisando as lutas entre árabes e israelenses, criticando os concursos de miss, o bolchevismo e a situação política na Rússia.
O afã de Frida Vingren em participar ativamente em diversas atividades despertou a atenção do missionário sueco Samuel Nyström que via com estranheza a liberdade conferida à Frida por parte de seu colega Gunnar Vingren. O diário de Vingren acusa o recebimento de uma carta de Samuel Nyström no dia 27 de setembro de 1929, onde este atacava com veemência o ministério feminino. Vingren enviou carta em resposta a Nyström onde reafirmava sua posição favorável ao trabalho feminino na Igreja. Não satisfeito, Nyström decidiu falar pessoalmente com seu opositor e o encontro se deu em 04 de novembro de 1929.
Conforme o relato de Gunnar Vingren, seu colega insistiu na tese de que a mulher não poderia pregar nem ensinar, mas somente testificar. E foi além, afirmando que, se às mulheres assembleianas fossem dadas tais liberdades, ele deixaria o Brasil. Samuel Nyström com a intuito de levantar reforços foi buscar o endosso de Daniel Berg e Simon Ludgren à sua tese e, convencendo-os, foi novamente ter com Gunnar Vingren. Mas Vingren, mesmo frente às pressões de três importantes missionários, foi irredutível e continuou a insistir nos benefícios que a Igreja poderia ter ao investir no trabalho feminino.
A notícia que confirmava a realização na cidade de Natal da primeira Convenção Geral das Assembléias de Deus pôs Gunnar Vingren em alerta, certo que estava da presença do tema “ministério feminino” na pauta da reunião. Por isso, postou no dia 1° de abril de 1929 uma carta a Nyström onde voltava a insistir na importância de se reconhecer o ministério feminino na Igreja:

Não posso deixar de apresentar a minha convicção de que o Senhor chamou (...) homens e mulheres para o serviço do Evangelho (...) Eu mesmo fui salvo por uma irmã evangelista que veio visitar e realizar cultos na povoação de Björka, Smaland, Suécia, há quase trinta anos. Depois veio uma irmã me instrui nos Estados Unidos sobre a doutrina com o Espírito Santo. Também quem orou por mim para que eu recebesse a promessa forma irmãs. Eu creio que Deus quer fazer uma obra maravilhosa neste País. Porém, nosso modo de agir podemos impedi-la. Para impedi-la, devemos dar plena liberdade ao Espírito Santo para operar como Ele quiser.

Confirmando o que previra Gunnar Vingren, na primeira Convenção Geral das Assembléias de Deus realizada na cidade de Natal em 1930, a questão do ministério feminino compôs a pauta . A resolução emitida pela Convenção deixou claro que Vingren, além de não convencer Samuel Nyström, saiu derrotado em seu intento de legitimar o ministério feminino:

As irmãs têm todo o direito de participar na obra evangélica, testificando de Jesus e a sua salvação, e também ensinando quando for necessário. Mas, não se considera justo que uma irmã tenha a função de pastor de uma igreja ou de ensinadora, salvo em caso excepcionais como citado em Mateus 12.3-8. Isso deve acontecer somente quando não existam na igreja irmãos capacitados para pastorear e ensinar.

Essa resolução colocou fim aos debates sobre o ministério feminino – pelo menos em âmbito institucional – já que em consulta às Convenções que se seguiram encontramos um espaço de cinco décadas de silêncio sobre esse assunto. Evidentemente, as mulheres, mesmo sem o reconhecimento eclesiástico, continuavam a efetuar inúmeros trabalhos na Igreja, principalmente no chamado “círculo de oração” . O momento em que as discussões em torno da legitimidade do ministério feminino reapareceram nas Convenções Gerais das Assembléias de Deus conjumina com o período em que os ideais feministas exerciam pressão em diversas esferas da sociedade, inclusive na religião (Rosado Nunes, 2001).
A Assembléia de Deus não demorou a se manifestar contra os ideais feministas e o fez por meio de um de seus mais prestigiados periódicos: a revista A Seara. Em julho de 1978, a serena imagem reproduzida na capa de A Seara (um lindo crepúsculo rural cujo tom laranja refletia-se num belo lago onde se projetava a figura do altivo cata-vento que o ladeava), era perturbada por uma agressiva tarja cor de rosa onde lia-se em caracteres dessa mesma cor: “A posição da mulher cristã ante a onda feminista”. A referida tarja anunciava a reportagem especial destinada a tratar da posição da mulher cristã num momento em que os ideais feministas estavam cada vez mais em evidência.
A matéria que tinha como título “De Sara ao feminismo”, trazia com destaque no alto da página o seguinte esclarecimento: “No princípio o poema uniu a mulher e a rosa. Hoje numa luta contra o patriarcado ela prefere ser chamada de operária, industrial. Defendendo sua liberdade ela reclama o direito de competir com o homem. Pode uma mulher cristã ser uma feminista?”
O preâmbulo da matéria sintetiza bem o seu teor. Marcadamente contra o feminismo, a reportagem realizou um histórico do movimento feminista e o contrapôs à vida das heroínas bíblicas, ressaltando com isso os equívocos das mulheres emancipacionistas. Feito isto, passou-se à coleta de relatos de mulheres religiosas que ocupavam postos no mercado de trabalho ou eram esposas de importantes pastores da Igreja para saber o que elas pensavam a respeito dos ideais feministas. As respostas foram muitos semelhantes, embora reconhecessem alguns avanços, unanimemente todas acreditavam que deveria haver limite na atuação da mulher.
Foi o que afirmou a professora Helena Barata Figueredo, da Assembléia de Deus de São Cristóvão – RJ, para quem a mulher poderia sim ocupar qualquer cargo na sociedade, desde que não ultrapassasse os limites da Bíblia. A professora Cylea Barros, também da igreja de São Cristóvão, era enfática ao afirmar: “Penso que a mulher perde muito por não ser apenas mulher. Sua posição de ajudadora é cômoda, doce e aprazível” . Já a supervisora educacional do Instituto Bíblico Pentecostal, Albertina Malafaia (mãe do ainda pouco conhecido pregador Silas Malafaia), ainda que acreditasse na mesma capacidade para ambos os sexos considerava que a mulher deveria dar o lugar de honra na sociedade ao homem. Além do mais, Albertina admitia o machismo como válido, por ser ele próprio da natureza masculina e arrematou: “a mulher deve permanecer na retaguarda” .
Ainda falaram a professora Jacira Maciel, para quem as mulheres não deveriam ocupar os mesmos postos que os homens , Celeste Mata, que acreditava que a formação psicológica e biológica da mulher as impediam de concorrer com os homens e a esposa do pastor Paulo Leivas Macalão, Zélia Macalão que advertiu: “a mulher deve dedicar-se exclusivamente ao lar conforme os preceitos bíblicos” .
Como podemos ver a revista foi muito hábil ao preparar sua estratégia de ataque ao feminismo. Em vez dos homens escreverem contra as feministas, optou-se por selecionar um seleto grupo de mulheres que falariam às mulheres sobre os perigos dos ideais feministas.
Mas o ambiente geral não revela uma atmosfera tão cordata como o que fora apresentado pelas mulheres entrevistadas. Se o assunto estivesse resolvido não voltaria a aparecer nas Convenções Gerais da Igreja como acorreu em 1979, no encontro realizado em Porto Alegre quando os seguintes tópicos foram colocados em discussão: a separação de diaconisas e a unção ministrada por mulheres. A dificuldade em se chegar a um consenso fez com que a Convenção encaminhasse o assunto para apreciação do Conselho de Doutrina que apresentaria seu relatório somente no encontro seguinte. Os registros da Convenção de 1983 mostram que o Conselho de Doutrina ainda que reconhecesse o trabalho feminino, principalmente no campo missionário, não aceitou incluir as mulheres ao rol de ministros:

A mulher cristã, quando separada para o trabalho missionário, pode portar documento comprobatório como missionária, mas não como ministro do Evangelho, seja como evangelista ou como pastor, isso porque não concordamos com qualquer tipo de consagração de mulheres, por não encontrarmos base bíblica para isso.

Em 1985, as mulheres assembleianas deram um importante passo na busca por maior participação nas atividades da Igreja. Ainda que sem constar oficialmente nos registros da Convenção Geral, sabe-se que durante o encontro realizado em 1985 na cidade de Anápolis, no estado de Goiás, as esposas dos pastores organizaram reuniões paralelas para debaterem diversos assuntos inerentes ao trabalho feminino (Araujo, 2007. p. 878). O mesmo ocorreu na cidade de Salvador na Convenção de 1987, na 1° Assembléia Geral de 1989 realizada na cidade de São Paulo e no ano de 1990, em Convenção que ocorreu nesse mesmo município (Araujo, 2007. p. 878). Somente após quatro edições das reuniões “paralelas” organizadas pelas esposas dos pastores o encontro recebeu da Convenção Geral o reconhecimento, sendo transformado em órgão oficial da Convenção Geral das Assembléias de Deus no Brasil com a denominação de União Nacional das Esposas de Ministros das Assembléias de Deus (UNEMAD). A União nascia com o objetivo de “congregar esposas de ministros, visando mais confraternização e troca de experiência nas diversas áreas de atuação da mulher como parte essencial do ministério pastoral”.
Ao se acompanhar os debates sobre o ministério feminino na década de 1990 por meio dos principais periódicos assembleianos, podemos pensar que a liderança da Igreja achava-se dividida em torno dessa questão. Miguel Vaz em artigo publicado em 1991 no Jornal Mensageiro da Paz, buscava subsídios bíblicos para contestar a idéia de igualdade entre homens e mulheres:

“Far-lhe-ei uma ajudadora”, Gn 2.18. A mulher tornou-se então, um apoio do homem, o auxilio, a companhia do homem, produzindo nele uma nova motivação e incutindo nele uma nova perspectiva de vida. Isto tudo e mais o seu esforço, a sua coragem a sua determinação calaram forte no agrado do homem, pelo que ele exclamou: “Esta é agora carne da minha carne e osso dos meus ossos. Esta será chamada a varoa desde que do varão foi tomada” (...) mulheres necessárias são aquelas que não se omitem, que não se escondem, mas que respondem presente quando são chamadas ao serviço da causa de Deus. Não será encobertadas por um título eclesiástico que as irmãs irão mostrar sua operosidade. Mas através de uma dedicação inconteste.

Já em 1994 encontramos no mesmo jornal um texto que atacava àqueles que insistiam em cercear a participação da mulher assembleiana no corpo ministerial da igreja, ainda que não admitindo o pastorado feminino:

Porém, o que nosso comentário contesta, é a indignidade da discriminação sofrida pela mulher no exercício de seu potencial como obreira. Indignidade que tem, às vezes se tornado maligna. Não! Não estamos defendendo separação de pastoras, mas uma atuação efetiva e bíblica da mulher, ocupando seu espaço num evangelismo agressivo e utilizando todo seu potencial espiritual, quase sempre ignorado (...) é fato comprovado que entre dez missionários pelo menos sete são mulheres que estão gastando suas vidas no campo (...) o mundo dá amaior lição aos filhos do Reino, quando abre oportunidade para que valorosas mulheres se destaque como ministras, prefeitas, deputadas, advogadas, médicas, cientistas, juristas, diplomatas, astronautas, escritoras, etc, que hoje até fazem parte da Academia Brasileira de Letras, por muito tempo verdadeiro “clube do bolinha”. É por isso que não nos importamos se nosso comentário exaltará o ânimo de muitos que, sem examinar a palavras de Deus, condenará nossa postura

Na Lições Bíblicas (revista tradicionalmente utilizada nas escolas dominicais) do 4° trimestre de 1998 o comentarista deixou claro seu descontentamento com a organização ministerial da igreja que não aproveitava a força do trabalho feminino por conta de meras convenções sociais:

A lição de hoje trata de um tema ainda pouco explorado em determinadas áreas do movimento evangélico, provavelmente em virtude de alguns preconceitos contra o trabalho feminino na igreja. É compreensível – mas não aceitável que os condicionamentos culturais da sociedade tenham favorecido posturas discriminatórias contra a participação das mulheres nas atividades eclesiásticas, no entanto esse não é o ensino da Palavra de Deus.

Todavia, um fato ocorrido na Convenção Geral das Assembléias de Deus no Brasil mostra que fora da imprensa não havia uma divisão tão clara de posicionamentos e que os pastores entusiastas do ministério feminino eram vozes dissonantes no corpo ministerial da Igreja. Passado sete anos do reconhecimento da UNEMAD por parte da Convenção Geral o tema ministério feminino voltaria a aparecer nas reuniões. Na Convenção Geral de 1999, afloraram velhos debates, pois a Igreja se propôs nesse ano a repensar sua “contextualização” no novo milênio e, assim, novamente discutiu-se a possibilidade de ordenação de mulheres aos cargos que até então eram exclusivamente ocupados pelos homens – principalmente o pastorado.
A complexidade do tema levou a formação de uma comissão especial para tratar do assunto sendo que o parecer da Comissão foi apresentado somente em 17 de janeiro de 2001 na Convenção Geral realizada em Brasília. O conteúdo do relatório não se conhece, apenas sabe-se que em uma rápida votação a Assembléia de Deus mais uma vez negava às mulheres a possibilidade de alcançar postos estratégicos na organização eclesiástica da Igreja. Para além da negação, é digno de nota o resultado do escrutínio já que dos dois mil e quinhentos pastores que votaram na ocasião apenas três foram favoráveis à ordenação de pastoras. A flagrante disparidade mostra que a apreciação desse tema na pauta da Convenção Geral era fruto de pressões externas e que muito pouco tinha a ver com os pastores que integravam a Convenção.
Um exemplo dessas pressões se revela quando observamos a mudança de posicionamento das mulheres assembleianas no fim do século XX. Ao compararmos a já citada reportagem de A Seara de 1978, com uma matéria publicada em 1998 na revista Seara (sucessora de A Seara) onde novamente foi selecionado um pequeno grupo de mulheres que deveriam falar sobre a atuação feminina na Igreja e na sociedade, ficam evidentes as transformações ocorridas no espaço de vinte anos.
Na visão de a Seara, uma pergunta continuava atravessando os séculos e exigindo uma rápida resposta: Que papel a mulher deve desempenhar na sociedade, ma igreja e na família? Foi buscando responder a essa indagação que a reportagem da revista procurou algumas mulheres para que estas falassem a respeito desse polêmico assunto.
A primeira a falar foi a professora de Ciência Política e História das Idéias Sociais da universidade carioca Candido Mendes, Cléia Nascimento, membro da Igreja Assembléia de Deus em Mutuá, São Gonçalo, RJ. De acordo com Cléa as atitudes feministas existiam por culpa do próprio homem: “o feminismo da década de 60 fez o homem deixar de exercer a liderança na igreja e na família. Há homens que vão a reboque da mulher na igreja e no lar. A presença masculina então vai ficando inexpressiva” .
Para ela era preciso que os homens resgatassem o papel de liderança dado por Deus, mas sem se tornarem machistas, sempre honrando as mulheres. Ao mesmo tempo em que parecia não estar veiculada às lutas por maior participação das mulheres na igreja, Cléia reconhecia que a mulher poderia sim ocupar um lugar de líder, desde que não se investisse de uma postura masculina e autoritária. Mas lembrava também que se à mulher caberia honrar o homem, deveria também ser honrada por ele.
As suas últimas palavras se distanciaram ainda mais de suas colocações iniciais:

não obstante ter havido um avanço muito grande na igreja no que diz respeito ao trabalho da mulher, o preconceito ainda existe, principalmente no âmbito hierárquico. A mulher, mesmo líder, não tem a importância que um presbítero tem. Quanto às solteiras, viúvas ou divorciadas, o problema é maior ainda.

A professora Elizabete Inácio atacava àquelas que segundo ela legislava em causa própria e que ao ocupar cargos acabavam se tornando vaidosas querendo passar a frente até dos pastores. Todavia, isso não era, no seu dizer, um problema do feminismo, mas sim do próprio “eu”. Elizabete também reconhecia a discriminação sofrida pelo “sexo frágil” na igreja ao afirmar: “na área de pregação há discriminação. Nos cultos importantes da igreja, como os de domingo ou evangelísticos, a mulher não pode pregar, ela pode pregar somente no culto de mulheres”
Vanda Freire da Costa presidente da União Nacional de Esposas de Ministros das Assembléias de Deus (UNEMAD) e esposa do presidente da Convenção Geral das Assembléias de Deus no Brasil, José Wellington Bezerra da Costa, não economizou nas críticas. Embora convicta da valorização que Deus sempre dispensou às mulheres percebia que na igreja não ocorria o mesmo:

se o talento de algumas mulheres for na área administrativa, pesquisa teológica ou no falar em público, as oportunidades diminuem. Mas, se elas disserem que tem o dom de trocar fraldas, controlar a meninada, ou assar bolos, aí sim a igreja tem trabalho para elas.

A missionária Maria Rosa também percebia que a mulher ainda sofria discriminação na igreja. Nas palavras da missionária enquanto os homens, mesmo solteiros, eram bem aceitos na igreja e nos campos missionários, as mulheres sofriam forte preconceito, quadro que se agravava ainda mais se fossem solteiras. A missionária Rosa sentia tal discriminação até mesmo na recepção dos missionários que voltavam a suas igrejas: “Quando os homens voltam do campo missionário recebem muitos convites e ofertas. As mulheres não. Isso acontece dentro e fora do Brasil” .
Já Rebekah Câmara, mesmo confessando nunca ter sofrido preconceito na igreja, reconhecia que muitas mulheres sofriam com este tipo de problema: “essa questão do preconceito está muito ligada à liderança local (...), mas acredito que o problema já foi maior e que hoje as oportunidades tem sido melhor distribuídas” .
Resta claro que as mulheres entrevistadas, mesmo que criteriosamente escolhidas para emitirem seus pareceres e ciosas de que estavam falando a um veículo oficial da Igreja, bem diferente daquelas que trataram do mesmo tema na reportagem de 1978, não se intimidaram em criticar os rígidos cânones da Assembléia de Deus que, além impedirem a participação das mulheres, muitas vezes ao abrirem espaço para a maior atuação feminina, não o faziam sem preconceito, murmúrios e desconfiança.
Do exposto, pôde-se perceber que após os anos Setenta vários aspectos pressionaram a liderança da Assembléia de Deus a colocar o debate do ministério feminino em discussão. Além da maior participação feminina no mercado de trabalho e contínuo processo de conquistas sociais, as mulheres assembleianas estavam cada vez mais organizadas e queriam o reconhecimento do trabalho que vinha há muito tempo sendo realizado. Mesmo que adentrando o novo milênio sem conseguir o reconhecimento do ministério feminino, as mulheres assembleianas em muito avançaram, uma vez que, além de maior liberdade de expressão, conseguiram organizar um importante espaço de discussão junto ao mais importante órgão da hierarquia da Igreja: a Convenção Geral das Assembléias de Deus no Brasil.

Considerações Finais

As religiões cristãs sempre demonstraram muita resistência em dar visibilidade à atuação feminina nas atividades das igrejas. Pautadas no argumento da “natural” submissão feminina, afastaram as mulheres por muito tempo das mais importantes esferas religiosas do poder (Tedeschi, 2008). Porém, tidas como o grande público alvo das igrejas as mulheres não demoraram a reivindicar reconhecimento pelo seu trabalho nas congregações, mesmo enfrentando sérias resistências por parte da tradicional hierarquia masculina.
Concordamos com Michelle Perrot, quando esta diz que a religião é ao mesmo tempo “poder sobre e poder das mulheres”, pois se a religião contribui para reproduzir a dominação masculina e a submissão feminina, por outro lado, dentro desta lógica as mulheres acabam por criar mecanismos “que lhes permitam deslocar ou subverter a relação de dominação” (Soihet, 2008: 198).
Segundo Roger Chartier (1995), quando as mulheres se conformam com os cânones corporais, ditados pelo olhar e pelo desejo dos homens, não estão simplesmente se curvando a uma submissão alienante, mas também estão construindo recursos a fim de que possam enfrentar a relação de dominação. E desse modo, reconhecer os mecanismos, os limites e, sobretudo os usos do consentimento é uma boa estratégia para corrigir o privilégio amplamente concedido pela história das mulheres às “vítimas ou rebeldes”, “ativas ou atrizes do seu destino”, em detrimento “das mulheres passivas”, vistas como consentidoras de suas situações.
Nem todas as fissuras que corroem as formas de dominação masculina tomam a forma de dilacerações espetaculares, tampouco significam discurso de recusa ou de rejeição. Elas nascem com freqüência no interior do próprio consentimento, quando a incorporação da linguagem da dominação se encontra reempregada para marcar uma resistência (Chartier, 1995: 42).
Nesse sentido, as luteranas e assembleianas souberam criar mecanismos que lhes permitissem “subverter a ordem estabelecida” que resultavam em avanços significativos para essas mulheres, pois rompiam com a tradicional hierarquia masculina presente em suas congregações. Através da análise da atuação feminina nas duas igrejas, constata-se que as luteranas, pela maior abertura que tiveram, conquistaram maior espaço que as assembleianas, porém, muito antes de indicar um problema, tal constatação demonstra que, embora, os resultados alcançados tivessem sido diferentes um único objetivo aproximava essas mulheres: retirar a mulher da invisibilidade que a religião constantemente buscava lhe outorgar, mostrando que um diálogo positivo entre mulheres e religião era possível.


Fontes e Referências Bibliográficas

Fontes:

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