André Dioney Fonseca
Mestrando em História (PPGH/UFGD).
Bolsista, CAPES.
Grupo de Pesquisa em História Religiosa e das Religiões (CNPq).
e-mail: andredioney@yahoo.com.br
Marcilene Nascimento de Farias
Mestranda em História (PPGH/UFGD).
Bolsista,CAPES.
Grupo de Estudos em Gênero, História e Interculturalidade (CNPq).
e-mail: marcilenefn@yahoo.com.br
Resumo: Nas últimas décadas, a sociedade passou por importantes mudanças sociais, econômicas e políticas, que levaram à contestação dos tradicionais papéis atribuídos aos homens e às mulheres. Nesse sentido, o campo religioso também sofreu o impacto dessas transformações, principalmente com a difusão das idéias feministas que incidiram diretamente sobre as relações de gênero. Com base nessas considerações, nesse estudo analisamos a atuação feminina em duas importantes instituições evangélicas: a Igreja Evangélica Luterana do Brasil e a Igreja Assembléia de Deus. A primeira ligada ao chamado protestantismo histórico e a segunda ao ramo pentecostal. Por meio de um estudo comparativo, objetiva-se demonstrar quais foram os desafios enfrentados pelas mulheres luteranas e assembleianas, congregadas em instituições que tinham em comum a tradição reformada, mas que eram imensamente distintas em suas práticas religiosas.
Palavras-Chave: Pentecostais, Protestante, Relações de Gênero
Abstract: In the last decades, society has gone trough important social, economical and political changes, that have led to the contestation of the traditional roles attributed to men and women. So, the religious field also has suffered the impact of those changes, mainly with the diffusion of feminist ideas that had happened directly on gender relations. Based on these considerations, in this research we analyze the female acting at two important evangelical institutions: Evangelical Lutheran Church of Brazil and Assembly of God Church. The first one is related to the called historic Protestantism and the second one to the Pentecostal sphere. By a comparative study, it is intended to demonstrate which were the challenges faced by lutheran and assembly women, congregated in institutions that had in common the reformed tradition, but that were immensely distinct in their religious practices.
Keywords: Pentecostal, Protestant, Gender Relations
Introdução
Nas últimas décadas, a sociedade passou por importantes mudanças sociais, econômicas e políticas, que levaram à contestação dos tradicionais papéis atribuídos aos homens e às mulheres e o campo religioso também sofreu o impacto dessas transformações, principalmente com a difusão das idéias feministas que incidiram diretamente sobre as relações de gênero (Rosado-Nunes, 2001). Conforme Lucila Scavone (2008) o contexto de desenvolvimento dos movimentos feministas abriu caminhos para que em todos os campos do social, as questões de gênero fossem difundidas e “o campo religioso, em seu aspecto institucional, tradicionalmente antifeminista, não ficou imune aos efeitos sociais e culturais das idéias feministas contemporâneas” (Scavone, 2008: 07).
Nessa conjuntura, o feminismo pós-60, buscou entender a ligação da mulher com os fenômenos religiosos, a fim de construir uma crítica às injunções da igreja à vida das mulheres. Todas as inquietações que permeavam essa relação, aparentemente paradoxal entre a mulher e a religião, levavam a um questionamento central: por que as mulheres buscavam a religião, se a religião ratificava-lhes um lugar de subalternidade na sociedade? (Scavone, 2008: 01). A resposta a uma questão de tamanha complexidade não poderia ser alcançada simplesmente no plano da especulação e por sua emergência o tema não demorou a alcançar o meio acadêmico. Dentre os estudiosos que buscaram contribuir com esse debate destaca-se Michelle Perrot para quem os vínculos entre mulheres e religião, são antigos, poderosos e ambivalentes, uma relação que mesclava sujeição e liberação, opressão e poder de maneira quase indissolúvel (Perrot, 2005: 270).
Conforme Perrot (2007), a relação das mulheres com a religião é paradoxal, ao passo que as religiões representam, ao mesmo tempo, poder sobre as mulheres e poder das mulheres. Exerce “poder sobre as mulheres”, por ter na diferença entre os sexos um de seus fundamentos, como é comum entre as grandes religiões monoteístas. No entanto, a religião torna-se “poder das mulheres”, quando estas conseguem transformar a posição de submissão que a religião lhes reserva, na base de um “contra-poder” e de uma “sociabilidade”. Dessa maneira, a religião ainda que reforce a submissão das mulheres apresenta-se como um abrigo às suas misérias (Perrot, 2007: 83).
Na perspectiva de Pierre Bourdieu (1999), o trabalho de “diferenciação” a que homens e mulheres estão submetidos foi até época recente, garantido por três instâncias principais: a Família, a Igreja e a Escola. A Igreja é marcada pelo antifeminismo profundo de um clero pronto a condenar todas as faltas femininas à decência, sobretudo em matéria de trajes, reproduzindo, assim, uma visão pessimista das mulheres e da feminilidade, através de uma moral familiarista, dominada por valores patriarcais e, principalmente, pelo dogma da inata inferioridade das mulheres (Bourdieu, 1999: 103).
Desse modo, a relação entre mulheres e religião se torna complexa, pois as práticas religiosas ao mesmo tempo em que oferecem às mulheres repostas imediatas aos seus problemas familiares e pessoais, também reafirmam o lugar tradicional das mulheres na sociedade, de acordo com sua doutrina patriarcal e androcêntrica (Scavone, 2008: 06).
Segundo Rosado-Nunes, historicamente, os homens dominam a produção do que é “sagrado” nas diversas sociedades e os discursos e práticas religiosas trazem a marca dessa dominação. Normas, regras, doutrinas são definidas por homens em praticamente todas as religiões conhecidas. Enquanto isso, as mulheres continuam ausentes dos espaços definidores das crenças e das políticas pastorais e organizacionais das instituições religiosas. Para a autora, o investimento da população feminina nas religiões dá-se no campo da prática religiosa, nos rituais, na transmissão, como guardiãs da memória do grupo religioso. Sendo assim, um dos principais objetivos dos estudos de gênero é desconstruir o preconceito de que a biologia determina o feminino, enquanto que, por outro lado, a cultura ou a dimensão humana seria uma criação masculina (Rosado-Nunes, 2005: 363).
Na perspectiva de Rosado Nunes, na tentativa de desconstruir o determinismo biológico, o pensamento feminista encontrou na religião um de seus principais adversários, uma vez que as religiões trazem de maneira explícita ou implícita em sua prática institucional e histórica, uma visão antropológica que estabelece e delimita os papéis masculinos e femininos. O fundamento dessa visão, segundo a autora, encontra-se em uma ordem não humana, não histórica, e, portanto, imutável e indiscutível, tomando a forma de dogmas. Reflexos das sociedades nas quais emergiram, as religiões espelham sua ordem de valores, que reproduzem em seu discurso, sob o manto da revelação divina. Por isso, o lugar reservado às mulheres, conforme essa autora, no discurso e na prática religiosa não foi, e freqüentemente ainda não é, dos mais felizes (Rosado-Nunes, 2005, p. 364).
Já Eliane Moura da Silva (2006) considera o poder das mulheres dentro das igrejas algo real e concreto. Para a autora, os ministérios femininos e as atividades congregacionais, ao mesmo tempo em que servem para segregar as mulheres, também desencadeiam formas alternativas de poder institucional, além de apoio emocional e material mútuo encontrados no espaço que a autora denomina de “comunidades de sexos”. Além disso, as mensagens religiosas desempenham uma função pragmática, por meio das conversões e da reforma dos papéis de gênero, melhoram o convívio dentro do núcleo familiar. Diante das constantes pressões sofridas em torno das diferentes funções e papéis sociais que devem desempenhar enquanto mães, esposas, trabalhadoras, donas de casa e cidadãs, muitas mulheres “optam” por envolver-se em comunidades religiosas tendo-as como fortes elementos de apoio (Silva, 2006: 22).
Ao estabelecer um diálogo entre gênero e religião Sandra Duarte de Souza (2006) observou que a ascensão pública das mulheres representa uma ameaça, principalmente, no caso das organizações religiosas, onde tem sido cada vez mais crescente a participação das mulheres nas esferas de poder institucional. Ao considerar o caso do “protestantismo histórico”, a autora verificou a presença feminina em lugares anteriormente ocupados somente por homens, como é o caso dos seminários e das faculdades de teologia, bem como a crescente participação feminina em postos antes exclusivamente masculinos, como a posição de bispas, pastoras, presbíteras e diaconisas. Para essa autora, tais mudanças, ainda que lentas, evidenciam um processo de ruptura com a concentração androcêntrica do poder na sociedade (Souza, 2006: 34).
Semelhante tendência foi observada por Maria das Dores Campos Machado (2005) para o caso dos pentecostais. Em análise das principais transformações ocorridas nos últimos 15 anos no sistema de gênero hegemônico no pentecostalismo, a autora demonstra que ocorreram inúmeras transformações nas representações e relações de gênero nesse grupo religioso, com avanços, principalmente, na esfera social, pois a mulher pentecostal ampliou sua participação tanto na igreja como nas atividades políticas por incentivo de suas instituições – ainda que tais atividades fossem, em parte, controladas pelos homens.
Conforme aponta Perrot (2005), o silêncio é o comum das mulheres, sendo conveniente à sua posição secundária e subordinada, um mandamento reiterado através dos séculos pelas religiões, pelos sistemas políticos e pelos manuais de comportamento. Exigi-se silêncio das mulheres na igreja ou no templo, maior ainda na sinagoga. Todavia, Perrot observa que as mulheres não respeitaram estas injunções, seus sussurros e seus murmúrios correm na casa, nos vilarejos, nas cidades, inflados por suspeitos e insidiosos rumores que flutuam nas margens da opinião. Para a autora, “os dominados podem sempre esquivar-se, desviar as proibições, preencher os vazios do poder, as lacunas da História. Imagina-se, sabe-se que as mulheres não deixaram de fazê-lo” (Perrot, 2005: 10).
Desse modo, metodologicamente esta pesquisa segue os estudos de gênero, mormente os trabalhos que nas últimas décadas buscaram entender a relação entre gênero e religião. Sandra Duarte de Souza considera que as questões envolvendo gênero e religião são ainda pouco discutidas e pouco admitidas, abordadas de forma muito acanhada. A autora assinala que a religião é uma construção sócio-cultural e que sua discussão envolve as transformações sociais, as relações de poder, de classe, de gênero, de raça/etnia. Estudá-la requer a inserção “num complexo sistema de trocas simbólicas, de jogos de interesses, na dinâmica da oferta e da procura; é deparar-se com um sistema sócio-cultural permanentemente redesenhado que permanentemente redesenha as sociedades”. (Souza, 2006: 8). Deste modo, para Souza pensar as representações de gênero demanda pensar o papel da religião na construção social dos sexos (Souza, 2006: 9).
A definição de gênero utilizada neste estudo baseia-se na definição de Joan Scott, para quem o gênero “é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder” (Scott, 1996: 14). Para Scott, utilizar a categoria gênero em análises sociais significa rejeitar explicitamente as justificativas biológicas para as desigualdades nas relações sociais entre os sexos. A autora acredita ainda que através das relações de gênero as relações de poder, de dominação e de subordinação são construídas.
A partir dessas considerações, nesse estudo analisaremos a atuação feminina em duas importantes instituições evangélicas: a Igreja Evangélica Luterana do Brasil e a Igreja Assembléia de Deus. A primeira ligada ao chamado protestantismo histórico e a segunda ao ramo pentecostal . Por meio de um estudo comparativo, objetiva-se demonstrar quais foram os desafios enfrentados pelas mulheres luteranas e assembleianas, congregadas em instituições que tinham em comum a tradição reformada, mas que eram imensamente distintas em suas práticas religiosas.
Liga das Senhoras Luteranas do Brasil (LSLB): a atuação feminina na Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB)
As observações em torno da atuação feminina na Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB), por meio da Liga de Senhoras Luteranas (LSLB), são de extrema importância para entendermos como se desenvolveu o trabalho feminino e as lutas das mulheres nessa instituição religiosa.
A primeira Liga de Mulheres da Igreja Luterana foi organizada na Igreja Luterana Sínodo de Missouri (LCMS) nos Estados Unidos, a Lutheran Women’s Missionary Leage (LWML), ao que se tem nota, esta foi de grande importância tanto para as obras de missão como para o serviço social da comunidade. Na Igreja Luterana do Brasil, também aos poucos foram sendo fundadas sociedades de senhoras e foi a partir da formação dessas sociedades que as mulheres luteranas decidiram verificar a possibilidade de formar uma Liga Nacional, o que veio a se concretizar alguns anos mais tarde (Warth, 1979: 208).
Foi a partir da formação dessas sociedades que as mulheres luteranas passaram a buscar a formação de uma Liga Nacional que congregassem estas sociedades já existentes em torno de um objetivo comum: auxiliar financeiramente a IELB e ao mesmo tempo promover a união das mulheres luteranas. Ottilie Mueller, a principal idealizadora da LSLB, em entrevista ao então Boletim Informativo da Liga de Senhoras Luteranas do Brasil em 1966, relatou que eram bem numerosas as sociedades de senhoras existentes na IELB antes da criação da LSLB, estas sociedades, segundo a entrevistada, eram muito ativas, porém trabalhavam no interesse de suas próprias comunidades. Para Ottilie Mueller, essas comunidades, caso se unissem e formassem uma Liga Nacional, poderiam colaborar de forma mais direta no trabalho da Igreja:
pensava eu que as senhoras do Brasil poderiam estender a esfera de suas atividades além dos limites de suas respectivas congregações; lembrada do trabalho da Liga Missionária de Senhoras da igreja-mãe, julgava eu que o Senhor também teria prazer num desenvolvimento maior do trabalho executado pelas irmãs no Brasil”.
Ottilie Mueller conhecia bem o que se passava na Igreja Luterana dos Estados Unidos. Norte-americana que era, veio para o Brasil, acompanhando seu esposo o pastor George Jhon Mueller, em 1936. O início das atividades do pastor Mueller no Brasil foi como professor no Seminário Concórdia, em Porto Alegre, ministrando aulas apenas em alemão, pois não sabia falar português. Após onze anos de atividades missionárias no Brasil, George e Ottilie Mueller, voltaram aos Estados Unidos para um período de férias. Enquanto esteve nos Estados Unidos Ottilie conheceu pessoalmente o importante trabalho desenvolvido pela Liga Missionária de Senhoras Luteranas (LWML), fato que aguçou mais ainda seu interesse em organizar uma Liga Nacional de Senhoras Luteranas no Brasil.
De volta a Porto Alegre em 1949, Ottilie Mueller resolveu seguir o exemplo das senhoras luteranas norte-americanas, mobilizando as mulheres luteranas brasileiras em torno da formação de uma Liga Nacional. Ottilie Mueller aproveitando a realização, em Porto Alegre, de uma Convenção Pastoral, em julho de 1956, convidou as esposas de pastores e professores que estariam presentes, além de outras lideranças femininas de Porto Alegre, para uma reunião, ocasião em que apresentaria a idéia de formar uma Liga Nacional. Assim, atendendo prontamente ao convite da senhora Mueller, 93 mulheres pertencentes a várias sociedades de Porto Alegre e uma representante do Estado de Santa Catarina, reuniram-se às 15 horas do dia 4 de julho de 1956, com o intuito de fundar uma liga feminina na IELB.
Como a participação na reunião foi majoritariamente de senhoras de Porto Alegre, a Liga fundada nesta ocasião fora considerada provisória, o que levou à convocação oficial de todas as sociedades de senhoras do Brasil para o 1º Congresso Nacional da LSLB, em Porto Alegre, no dia 16 de janeiro de 1957, quando de fato seria oficialmente criada a liga de senhoras luteranas do Brasil. Muitos detalhes sobre esse encontro estão descritos num documento que podemos considerar como a certidão de nascimento da Liga: a Ata do 1° Congresso Nacional de 1957, que se encontra salvaguardada no arquivo histórico da LSLB. Pelo que lemos nesse documento, o conclave realizou-se no Salão da Juventude do Seminário Concórdia de Porto Alegre, com a participação de 23 sociedades de senhoras, com uma presença total de 103 senhoras, vindas principalmente do Rio Grande do sul, mas também de Santa Catarina, São Paulo e Paraná.
Durante o Congresso discutiu-se e aprovou-se o projeto dos estatutos que deveriam reger a Liga e também foi feita uma eleição para definir a primeira diretoria geral da LSLB . Em contrapartida, foram eleitos três pastores que desempenhariam a função de conselheiros da Liga, demonstrando, assim, a vigilância masculina da IELB, nas atividades da LSLB.
Alguns dias após a realização do 1° Congresso Nacional da LSLB, teve início a 34ª Convenção Nacional da IELB. Aproveitando a oportunidade a LSLB, encaminhou à 34ª Convenção uma moção propondo o reconhecimento oficial da LSLB como uma organização auxiliar da IELB: